terça-feira, 12 de maio de 2009

DIREITOS DE PERSONALIDADE/DIREITO AO SOSSEGO

DIREITO AO SOSSEGO

Flávio Pereira Lima


I - Introdução
“Quase não se pode dormir. Em São Paulo não se dorme nem se repousa. Nossos nervos são mantidos dia e noite numa dolorosa excitação. No estado de vigília, cada hora que passa é um prego que nos espeta o crânio. Lá fora está travado o irritante diálogo dos automóveis. Os bondes passam abalando tudo e ao lado do estrondo do ‘camarão’ antidiluviano, que rola aos trancos, há também o grito lancinante dos ‘trucks’ nas curvas e o martelar frenético, timpânico, de estrídulas sinetas. Deve-se acrescentar o pregão dos jornais, o russo das prestações, o comprador de roupa velha, a matraca dos mascates, o grito lamentoso dos ambulantes, sem esquecer o homem dos espanadores, o apito das locomotivas, o mugido das fábricas, o trepidar das oficinas, o rádio em todas as casas e o disco em todas as lojas, as carroças com aros de ferro sobre paralelepípedos mal unidos, o vendedor de bilhetes, a metralhadora dos motociclistas com escapamento aberto. É barulho demais! Socorro! Chamem a ‘Assistência’! ... Não. É melhor não chamar, ela viria fazer ainda maior barulho com o retinir daquela campainha que extirpa nervos sem anestésico! Eu necessito de silêncio como de pão! (“A Cidade do Barulho”, por Afonso Schmidt, em “O Estado de São Paulo”, janeiro de 1931)
Como bem retratado por Afonso Schmidt em 1931, o conflito entre a modernidade das grandes cidades e o direito ao sossego dos cidadãos vem sendo objeto de estudos jurídicos desde o começo do século.
Ao longo desses anos, o direito ao sossego vem sendo abordado no âmbito do direito administrativo, penal e, também, como restrição ao direito de propriedade, no campo dos direitos reais.
Entretanto, o direito ao sossego é modalidade de direito da personalidade, apesar de sua tutela estar garantida por normas de ordem pública e de ordem privada.
Assim, procuraremos no presente trabalho analisar o direito ao sossego, sob a ótica dos direitos da personalidade, bem como suas conseqüências na vida em sociedade.
II - Os Direitos da Personalidade
Antes de definirmos direito da personalidade, faz-se necessária a verificação do que é, juridicamente, a personalidade.
Isto porque, a pessoa, seja física, seja jurídica, como sujeito de deveres e obrigações, protagoniza, sem nenhuma dúvida, o espetáculo das relações jurídicas. É a idéia de pessoa, para o Direito, um conceito primordial. Um verdadeiro ponto de partida. Um núcleo de dispersão. Prova disso é o fato de que
o Livro I do Código Civil de 1916 está dedicado, precisamente, às pessoas e aos aspectos que a elas mais diretamente se referem.1[1]
Para GOFREDO DA SILVA TELLES JÚNIOR, personalidade é “o conjunto dos caracteres próprios de um determinado ser humano. É o conjunto dos elementos distintivos, que permite, primeiro, o reconhecimento de um indivíduo como pessoa e, depois, como uma certa e determinada pessoa”2[2].
No mesmo sentido, MARIA HELENA DINIZ, ensina que “a personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa. ‘A personalidade não é um direito, de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade’. A personalidade é que apoia os direitos e deveres que dela irradiam, é objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens”.3[3]
Pode-se concluir, portanto, que a personalidade é um conjunto de caracteres próprios da pessoa física ou jurídica. A personalidade não é o direito, mas o objeto do direito, ou seja, os atributos da pessoa (vida, nome, honra, imagem, liberdade, etc.).
Por essa razão, GOFREDO DA SILVA TELLES acentua que “os direitos da personalidade são, estes sim, direitos subjetivos: são os direitos de defender
1[1] José Antônio de Paula Santos Neto, em “Direitos da Pessoa e Direitos da Personalidade ou Estado da Pessoa, Direitos de Estado, Direito ao Estado e Direitos da Personalidade, RT 719/37
2[2] “Homenagem a Miguel Reale: uma revisão dos conceitos de personalidade, dos direitos da personalidade e do direito de autor”, pág. 584.
3[3] “Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 1, pág. 83
essa primordial propriedade humana, esse particular bem do homem, que se chama personalidade”.4[4]
Seguindo a linha do Grande Mestre, verifica-se que o direito da personalidade é um direito subjetivo excludendi alios, ou seja, é o direito de exigir um comportamento negativo de todos.
Nesse sentido, ORLANDO GOMES esclarece que “sob a denominação de direitos da personalidade, compreende-se direitos considerados essenciais à pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, a fim de resguardar a sua dignidade.5[5]
Direito de personalidade, para PAULO MOTA PINTO, é o “conjunto de direitos subjetivos que incidem sobre a própria pessoa ou sobre alguns fundamentais modos de ser, físicos ou morais, dessa personalidade, e que inerem, portanto, à pessoa humana - são direitos das pessoas que tutelam bens ou interesses da sua própria personalidade. Tais direitos são, portanto, essenciais, uma vez que a própria personalidade humana quedaria descaracterizada se a proteção que lhes concedem não fosse reconhecida pela ordem jurídica”.6[6]
Como se vê, trata-se da tutela de bens que existem antes mesmo da existência do próprio direito, que compõem a personalidade das pessoas, e, desta forma, o que se resguarda é o direito de fazer com que todos respeitem esses bens jurídicos.
4[4] Ob. cit., pág. 585
5[5] “Introdução ao Direito Civil”, Forense, 1.995, pág. 149
6[6] “O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada”, Boletim da Faculdade de Coimbra nº 69, 1.993, pág. 482
Assim sendo, os direitos da personalidade possuem as seguintes características:
a) absolutos - posto que são oponíveis contra todos (erga omnes);
b) extrapatrimoniais - insusceptíveis de valoração econômica;
c) intransmissíveis - por ser inerente à própria pessoa, não é possível que outrem exerça o direito do titular;
d) indisponíveis - pressupõe a exclusividade do titular, ou seja, somente é possível o uso e o gozo pelo titular do direito, ao que não se faculta a disposição;
e) irrenunciáveis - não podem ser renunciados, embora o titular possa deixar de exercê-los;
f) impenhoráveis - conseqüência da extrapatrimonialidade;
g) imprescritíveis - posto que essenciais à existência da personalidade e não se extinguem pelo não uso;
h) vitalícios - em regra, terminam com a morte do sujeito do direito.
Quanto à classificação dos direitos de personalidade, a grande dificuldade dos juristas foi a de propor esquemas que permitissem o enquadramento de todos os direitos de personalidade numa classificação lógica.
Para PONTES DE MIRANDA, por exemplo, os direitos da personalidade podem ser classificados em: “a) o direito à vida; b) o direito à integridade física; c) o direito à integridade psíquica; d) o direito à liberdade; e) o direito à verdade; f) o direito à igualdade formal (isonomia); g) o direito à igualdade material, que esteja
na Constituição; h) o direito de ter nome e o direito ao nome, aquele inato e esse nato; i) o direito à honra; j) o direito autoral de personalidade”.7[7]
Já ORLANDO GOMES optou por classificar os direitos da personalidade em duas grandes categorias, quais sejam: a) “direitos à integridade física”, compreendendo o direito à vida e o direito sobre o próprio corpo; e, b) “direitos à integridade moral”, compreendendo o direito à honra, à liberdade, ao recato, à imagem, ao nome e ao direito moral de autor.8[8]
Segundo o saudoso CARLOS ALBERTO BITTAR, os direitos de personalidade podem ser distribuídos em: “a) direitos físicos; b) direitos psíquicos; c) direitos morais; os primeiros referentes a componentes materiais da estrutura humana (a integridade corporal, compreendendo: o corpo, como um todo; os órgãos; os membros; a imagem ou efígie); os segundos, relativos a elementos intrínsecos da personalidade (integridade psíquica, compreendendo: a liberdade, a intimidade; o sigilo) e os últimos, respeitantes a atributos valorativos (ou virtudes) da pessoa na sociedade (o patrimônio moral, compreendendo: a identidade; a honra; as manifestações do intelecto)”.9[9]
De todas as definições apresentadas, porém, a que procurou ser mais específica foi a do Professor LIMONGE FRANÇA, que, cientificamente, dividiu os aspectos fundamentais da personalidade da seguinte forma:
“1) direito à integridade física:
1.1) Direito à vida: a) à concepção e à descendência (gene artificial, inseminação artificial, inseminação de proveta, etc.); b) ao nascimento (aborto); c)
7[7] “Tratado de Direito Privado”, Tomo VII, 3a ed., 1.971, ed. Borsoi, pág. 8.
8[8] Ob. cit., págs. 153-54
9[9] “Direitos da Personalidade”, 2a ed., Forense Universitária, Rio, pág. 17
ao leite materno; d) ao planejamento familiar (limitação de filhos, esterilização masculina e feminina, pílulas e suas conseqüências); e) à proteção do menor (pela família e sociedade); f) à alimentação; g) à habitação; h) à educação; i) ao trabalho; j) ao transporte adequado; l) à segurança física; m) ao aspecto físico da estética humana; n) à proteção médica e hospitalar; o) ao meio ambiente ecológico; p) ao sossego; q) ao lazer; r) ao desenvolvimento vocacional profissional; s) ao desenvolvimento vocacional artístico; t) à liberdade; u) ao prolongamento artificial da vida; v) à reanimação; x) à velhice digna; z)relativos ao problema da eutanásia;
1.2. Direito ao corpo vivo: a) ao espermatozóide e ao óvulo; b) ao uso do útero para procriação alheia; c) ao exame médico; d) à transfusão de sangue; e) à alienação de sangue; f) ao transplante; g) relativos a experiência científica; h) ao transexualismo; i) relativos à mudança artificial do sexo; j) ao débito conjugal; l) à liberdade física; m) ao ‘passe’ esportivo;
1.3. Direito ao corpo morto: a) ao sepulcro; b) à cremação; c) à utilização científica; d) relativos ao transplante; e) ao culto religioso.
2) Direito à integridade intelectual: a) à liberdade de pensamento; b) de autor; c) de inventor; d) de esportista; e) de esportista participante de espetáculo público.
3) Direito à integridade moral: a) liberdade civil, política e religiosa; b) à segurança moral; c) à honra; d) à honorificência; e) ao recato; f) à intimidade; g) à imagem; h) ao aspecto moral da estética humana; ao segredo pessoal, doméstico, profissional, político e religioso; j) à identidade pessoal, familiar e social (profissional, política e religiosa); l à identidade sexual; m) ao nome; n) ao título; o) ao pseudônimo”.10[10]
10[10] citado por Maria Helena Diniz, no Curso de Direito Civil Brasileiro, 1º vol., 13a ed., 1.997, pág. 101
III - O Direito ao Sossego
Na vida em sociedade não podem haver direitos absolutos, irrefutáveis, vez que, freqüentemente, se verifica a colisão entre dois direitos, havendo a necessidade de que esse conflito seja composto. Daí a máxima: o direito de um cidadão se estende até onde começa o direito do outro.11[11]
Se assim não fosse, como ensina MARIA HELENA DINIZ, se os proprietários pudessem invocar uns contra os outros seu direito absoluto e ilimitado, impossibilitados estariam de exercer qualquer direito, pois as propriedades se aniquilariam dessa forma.12[12]
Por essa razão, o sossego que se tutela, juridicamente, é o sossego relativo. Com efeito, o sossego é a relativa tranqüilidade, que permite a normalidade da vida, com as horas de atividade e as de descanso, que hão de ser especificamente distintas, pois o ruído máximo que se tolera à noite não é o ruído máximo que se tolera de dia.13[13]
Sossego, portanto, não quer dizer ausência de barulho, mas o sossego que pode se reclamar em circunstâncias normais.
Afinal, “ninguém, sem dúvida, pode pretender, sob invocação do direito ao descanso, que tudo, em derredor, se imobilize e cale. Tem, todavia, cada indivíduo
11[11] “Direito ao Sossego”, Rui Celso Reali Fragoso, em “Justitia”, 139/122
12[12] “Curso de Direito Civil Brasileiro”, “Direito das Coisas”, Saraiva, 4º vol., 9a ed., pág. 180
13[13] Pontes de Miranda, ob. cit., Tomo XIII, pág. 303
direito a impedir que os outros o incomodem em excesso, com ruídos insuportáveis, emanações prejudiciais à sua saúde e odores nauseabundos. Muito importa, outrossim, ter em conta a natureza dos lugares, distinguindo uma cidade da outra, cada bairro segundo o seu destino e, sobretudo, não esquecer a pré-ocupação, ou seja a anterioridade da posse”.14[14]
Para se saber quando há perturbação ao sossego, suscetível de proteção da lei, é preciso considerar vários fatores, entre os quais:
a) o grau de tolerabilidade, pois se o incômodo for tolerável o juiz despreza a reclamação da vítima, já que a convivência social, por si só, cria a necessidade de cada um sofrer um pouco;
b) a invocação dos usos e costumes locais, afinal não se pode exigir o silêncio da vida campestre em uma megalópole como São Paulo, pois, nesse caso, há uma perda do sossego em detrimento dos benefícios dos grandes centros;
c) a natureza do incômodo ao sossego; e,
d) a pré-ocupação, mas a anterioridade não é um critério absoluto para verificar o uso nocivo da propriedade.
Assim, somente o ruído anormal, fora dos parâmetros regulares de suportabilidade e que seja nocivo a outra pessoa é que recebe o apoio da lei.
Convém salientar, ainda, que não é só nas relações de vizinhança em que se verifica a violação ao sossego.
Com efeito, CAPELO DE SOUZA, afirma, com acerto, que nas relações de trabalho, em que há relação hierárquica pode haver violação ao sossego do
14[14] 4a Câm. Civ. do TJSP, j. em 25/9/1935, em RT 103/600
inferior hierárquico, passível de indenização. Afirma o professor português que “Injúrias ou agressões a colegas de trabalho poderão originar o despedimento, para além das sanções civis gerais. Também são ilícitas as situações de assédio sexual, maxime, de cerco prolongado no trabalho, movido por um superior hierárquico (seja homem ou mulher, hetero ou homosexual) a um inferior hierárquico, contra a vontade deste, com vista à obtenção de relações sexuais, determinadas pelo receio de represálias laborais. É violado o direito geral de personalidade do inferior hierárquico (particularmente, nas áreas de autodeterminação afetivo-sexual, de liberdade de movimentos, do sossego, da saúde mental, da honra e do bom nome), sendo o assediante responsável civilmente pelos prejuízos efetivamente causados, nomeadamente, a nível da honra, do bom nome do assediado, das perturbações psíquicas sofridas e dos incômodos”.15[15]
IV - O Conflito entre o Direito ao Sossego e o Direito de Propriedade
Um dos elementos constitutivos da propriedade é o direito de usar o bem recebido. Esse jus utendi, entretanto, sofre limitações quanto à intensidade do exercício do direito de propriedade.
Limita-se o direito do proprietário em razão do princípio geral que proíbe ao indivíduo um comportamento que venha a exceder o uso normal de seu direito, causando prejuízo a alguém, conforme disposto nos artigos 554 e 555 do Código Civil brasileiro de 1916.
Ora, é justamente a possibilidade de causar prejuízo à outrem que regula a nocividade ou não do uso, uma vez que o terceiro atingido tem o direito ao sossego, à saúde e à segurança.
15[15] “Direito Geral de Personalidade”, Coimbra Editora, 1.995, pág. 450/51
Esse aspecto é muito importante para demonstrar que o direito ao sossego é direito de personalidade, pois o que a lei determina é a abstenção da prática de atos nocivos a terceiros. Note-se, o que a lei proíbe é a prática de atos nocivos e não de atos ilegais ou abusivos.
No caso do sossego, particularmente, qualquer das pessoas atingidas pelo incômodo insuportável poderá exigir que o “vizinho” se abstenha de praticar esse ato incomodativo.
Pouco importa se a pessoa atingida pelo incômodo é proprietária, locatária, usufrutuária, posseira, empregado do imóvel vizinho, bastando, para ter direito de exigir a obrigação de não fazer do vizinho, que sofra os incômodos ao seu sossego além dos limites toleráveis.
Se, entretanto, a questão envolvesse apenas direitos de propriedade entre vizinhos, a única preocupação do legislador e do magistrado seria a de verificar a ilicitude ou abusividade do uso e não sua nocividade.
Por essa razão, o que se pode concluir é que o artigo 554 do Código Civil de 1916, inserido na Seção V - Dos Direitos de Vizinhança, do título II - Da Propriedade, procura tutelar um direito de personalidade e não um direito de propriedade.
Trata-se de conflito entre o direito de propriedade do causador do dano e o direito de personalidade da vítima, consistente no direito de qualquer pessoa de ter momentos de sossego, a bem de sua saúde e tranqüilidade.
Em verdade, o direito de propriedade sofre uma limitação no que diz respeito ao uso quando o exercício desse direito atinge a esfera mais íntima dos vizinhos, consistente no direito ter momentos de sossego.
A esse respeito, CAPELO DE SOUZA ensina que “no caso de conflito entre um direito de personalidade e um direito de outro tipo (v.g. um direito real, um direito de crédito, um direito familiar ou um direito público da Administração),
face sobretudo à ainda mais acentuada diversidade de bens tutelados e à freqüente ocorrência de contraposições entre bens pessoais e bens patrimoniais, verifica-se normalmente um diferente peso jurídico em tais direitos. A respectiva avaliação abrange não apenas a hierarquização entre si dos bens ou valores ínsitos nas proposições normativas referentes aos direitos conflituantes, adentro, ..., do conjunto de bens ou valores do ordenamento jurídico na sua totalidade e unidade, mas também a detecção e a ponderação de elementos preferenciais emergentes do circunstancialismo fáctico da sujectivação de tais direitos, maxime, a acumulação, a intensidade e a radicalização de interesses concretos juridicamente protegidos. Tudo o que dará primazia, nuns casos, aos direitos de personalidade ou, noutros casos, aos com eles conflituantes direitos de outro tipo.16[16]
Assim, conclui com precisão o professor português, “quando num prédio de habitação seja montado um estabelecimento em que habitualmente haja produção de ruídos ou de cheiros susceptíveis de incomodar gravemente os habitantes do prédio, o direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida destes deve considerar-se superior ao direito de exploração de actividade comercial ou industrial ruidosa ou incómoda. Mas, já o direito ao sossego, à tranquilidade e ao repouso dos moradores não prevalece sobre o direito de propriedade alheio, face aos ruídos normalmente provocados pelas vozes de aves domésticas legitimamente mantidas em quintais”.
Para compor esse conflito entre o direito de personalidade e o direito real, CAPELO DE SOUZA, ensina, com acerto, o seguinte: “para a hipótese de colisão de direitos desiguais ou de espécie diferente, determina o nº 2 do art. 335º do Código Civil que ‘prevalece o que deva considerar-se superior’. As partes não estão agora em posições conflituais idênticas ou equiparadas, pois a maior carga axiológico-jurídica do direito superior postula uma correspondente e adequada eficácia jurídica, mais ampla ou mais intensa do que a do direito inferior e, se
16[16] ob.cit., pág. 547
necessário, com detrimento desta. Por exemplo, nos casos referidos acima de prevalência do direito ao sossego, ao ambiente e à qualidade de vida de moradores de prédio habitacional sobre o direito de exploração de actividade comercial ou industrial, no mesmo prédio, com produção habitual de ruídos e cheiros incomodativos, o proprietário de um estabelecimento onde se exerciam estas actividades foi judicialmente obrigado a efectuar obras que evitassem tais incómodos e a não exercer suas actividades durante os períodos normalmente destinados ao descanso das pessoas”.
Alerta, entretanto, o renomado jurista, para o fato de que “mesmo o direito inferior deve ser respeitado até onde for possível e apenas deve ser limitado na exata proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses. Inclusivamente, caso sejam possíveis e adequados vários modos de exercício dos direitos superior e inferior, a solução legal do conflito impõe que as partes adoptem modos alternativos de exercício que respeitem a diferença axiológico-jurídica em causa e se mostrem não colidentes entre si ou, se isso não for possível, impõe que o titular do direito predominante adopte o modo de exercício mais moderado ou menos gravoso, que limite no mínimo o direito secundário.17[17]
Como se vê, muito embora esteja inserida no campo dos direitos reais, a proteção do sossego alheio pelo uso nocivo da propriedade constitui o critério adotado pelo Código Civil para compor o conflito entre o direito real (usar a propriedade) e o direito de personalidade (sossego).
V - O Direito ao Sossego como Direito da Personalidade
17[17] ob.cit., pág. 549
Alguns autores já inseriram, especificamente, o direito ao sossego como uma das espécies de direito de personalidade, como LIMONGE FRANÇA, que classificou o sossego como um dos desmembramentos do direito à vida.
A Constituição Federal de 1.988, importantíssima no que diz respeito aos direitos de personalidade, já no caput do artigo 5º, assegura a inviolabilidade do direito à vida.
O direito à vida compreende o direito à saúde e ao sossego, como bem classificado por LIMONGE FRANÇA. O sossego e a saúde estão intimamente ligados, uma vez que a perturbação do sossego causa, diretamente, perturbação à saúde das pessoas envolvidas.
Deveras, o barulho perturba as operações intelectuais mais simples: constitui um embaraço notável ao trabalho cerebral, exagera a fadiga, já grande, dos centros de colaboração, perturba o sono, tornando-o menos reparador, e assim viola uma das leis fundamentais da fisiologia - a do ritmo da atividade dos órgãos; a fase de dispêndio, de catabolismo, é exagerada, a fase de reparação, de anabolismo, é diminuída.18[18]
Além disso, os efeitos do ruído sobre o organismo são múltiplos. Realmente, “lesões auditivas do ouvido surgem por vezes de modo brutal (ruptura do tímpano, depois de uma deflagração, por exemplo), mas é mais freqüente surgirem progressivamente, com uma perda da percepção das freqüências dos sons mais agudos para os mais graves, podendo-se chegar à surdez. ... Actualmente, está-se a verificar um envelhecimento precoce da audição nos adolescentes e, nas cidades, a maior parte das pessoas que ultrapassaram os cinqüenta anos já não ouvem muito bem. As perturbações começam, em geral, por uma fadiga auditiva que impede que se mantenha uma conversação; depois de uma estadia num local em que o nível de ruídos é muito elevado, só se
18[18] S. Silva Barreto, em “O Mau Vizinho”, Revista Justitia nº 44, pág. 70
recupera a audição normal umas horas mais tarde. Por outro lado, os ruídos originam uma elevação do ritmo cardíaco e uma vasoconstrição dos vasos, o que provoca hipertensão. Podem-se manifestar perturbações gástricas em indivíduos submetidos durante longas horas a ambientes barulhentos. Verificam-se, igualmente, perturbações na visão das cores e na apreciação das distâncias. Os ruídos perturbam as funções hormonais, criando, em particular, um estado de stress (através da descarga de adrenalina)”.19[19]
E não é só. “O sistema nervoso é particularmente afectado e as perturbações precedentes estão-lhe ligadas. Segundo a Academia de Medicina, o ruído é a causa de 50% das doenças nervosas. A fadiga nervosa acumula-se progressivamente. Não existe adaptação ao ruído, mesmo que este não seja percebido continua a lesar o organismo. O sono pode ser perturbado ou tornar-se mesmo impossível. A exposição prolongada ao ruído origina falta de coordenação das idéias, irritabilidade, instabilidade ou neuroses”.20[20]
Convém ressaltar, ainda, que “o sossego não é perturbável apenas pelo som. Também o é pela luz, pelo cheiro, por apreensões e choques psíquicos, ou outros motivos de inquietação”.21[21] Também nesses casos a violação ao direito ao sossego causa sérios danos à saúde das vítimas do incômodo.
Como se vê, a violação ao direito ao sossego causa graves danos à saúde das vítimas e, por essa razão, está compreendido, como bem definiu LIMONGE FRANÇA, no direito à vida, que é o mais importante dos direitos de personalidade, pois nenhum outro bem pode ser concebido separado do direito à vida.
19[19] “Dicionário de Ecologia e do Meio Ambiente”, tradução do Prof. Dr. Carlos Almaça, Lello & Irmão Editores, Porto, pág. 237
20[20] “Dicionário de Ecologia e do Meio Ambiente”, citado, pág. 237-239
21[21] Pontes de Miranda, ob. cit., pág. 305
Por todas essas razões, verifica-se que o direito ao sossego é um direito de personalidade, que preenche todas as características inerentes aos bens jurídicos por estes tutelados, a saber:
a) absoluto (oponível erga omnes) - De fato, assim como nos direitos reais, qualquer pessoa pode exigir que todos se abstenham de praticar atos que violem o seu direito, ou seja, que lhe incomodem o sossego juridicamente protegido.
Adquire-se esse direito de exigir o comportamento de outrem pela mera aquisição da personalidade.
Ademais, “nos conflitos de vizinhança o que interessa é a nocividade e não a ilicitude do ato praticado”.22[22] Verifica-se, portanto, que o bem jurídico a ser protegido em casos que tais é o direito ao sossego inerente à existência de todas as pessoas.
É necessário esclarecer, porém, que o direito de defender o sossego é absoluto, ilimitado e tem eficácia erga omnes. Todavia, o sossego que é protegido pelo Direito é aquele normal, atentando para todos os fatores acima citados.
Assim, protege-se de forma absoluta e ilimitada o direito ao sossego relativo, à relativa tranqüilidade que permite a normalidade da vida.
b) extrapatrimonial - O sossego não é suscetível de valoração econômica, embora sua ofensa possa ser pressuposto de obrigação de indenizar, ainda quando se trate de puro dano moral23[23];
c) intransmissível - O sossego é inerente à própria pessoa, não sendo possível que outrem exerça o direito em lugar do titular.
22[22] Rui Celso Reali Fragoso, ob. cit., pág. 126
23[23] Orlando Gomes, ob. cit. págs/ 152/153
Realmente, na prática, essa questão é de fundamental importância no caso de conflito de vizinhança em que a pessoa que sente seu sossego perturbado pelo vizinho vende o imóvel onde reside e muda-se de cidade. Assim ocorrendo, não poderá o adquirente prosseguir na ação, por ser, o direito ao sossego, direito personalíssimo, inerente à pessoa do vendedor do imóvel. Poderá, contudo, promover nova ação fundada na defesa de seu sossego.
É por isso que não pode ser aceita a opinião de Capitant no sentido de que o relacionamento de vizinhança se resume em obrigações propter rem, sendo que dessas obrigações resultariam, porém outras de não fazer; e a violação dessas obrigações eram regidas pelos preceitos sobre responsabilidade civil.24[24]
Como se vê, tratando-se de direito de personalidade, o direito ao sossego é intransmissível.
d) indisponível - assim como todos os direitos de personalidade, somente pode ser exercido pelo titular, com exclusividade, não sendo admissível a disposição do direito ao sossego;
e) irrenunciável - a ninguém é dado o direito de renunciar ao sossego, mas o titular, tendo seu sossego perturbado, pode deixar de exercer o seu direito de fazer com que a pessoa que lhe incomoda se abstenha de praticar tais atos;
f) impenhorável - o sossego de alguém também não pode ser penhorado, posto que esse direito está fora do comércio, conseqüência da extrapatrimonialidade;
24[24] cit. por José de Oliveira Ascenção, “Responsabilidade Civil e Relações de Vizinhança”, RT 595/25
g) imprescritível - assim como nos demais direitos da personalidade, o direito ao sossego não se extingue pelo não uso, uma vez que é essencial à existência da personalidade; e,
h) vitalício - o direito ao sossego somente termina com a morte do sujeito.
VI - A Tutela do Direito ao Sossego, enquanto Direito de Personalidade, no âmbito do direito civil
Os direitos de personalidade, como vimos, destinam-se a resguardar a dignidade humana, mediante sanções, que devem ser suscitadas pelo ofendidos. Essa sanção, como ensina MARIA HELENA DINIZ, “deve ser feita através de medidas cautelares que suspendem os atos que desrespeitem a integridade física, intelectual e moral, movendo-se, em seguida, uma ação que irá declarar ou negar a existência da lesão, que poderá ser cumulada com ação ordinária de perdas e danos a fim de ressarcir danos morais e patrimoniais”.25[25]
A respeito dessa ação que pode ser promovida pelo ofendido em seus direitos de personalidade, o Código de Processo Civil autoriza, no artigo 287, que “se o autor pedir a condenação do réu a abster-se da prática de algum ato, a tolerar alguma atividade, ou a prestar fato que não possa ser realizado por terceiro, constará da petição inicial a cominação da pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença”.
E, ainda, no artigo 461, o Código de Processo Civil determina que “na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido,
25[25] Curso de Direito Civil, vol. 1, pág. 102
determinará providências que autorizem o resultado prático equivalente ao do adimplemento”.
No parágrafo quarto do mesmo artigo, especifica que o juiz, sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, poderá impor multa diária ao réu, independentemente do pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.
Esses dispositivos, que modificaram a antiga ação cominatória, normalmente são aplicados em casos de violação ao direito ao sossego e permitem que qualquer pessoa exija que seja respeitado o seu direito de personalidade, permitindo-se, inclusive a imposição de multa diária, liminarmente, para que o causador do dano cesse a prática nociva.
O mesmo ocorre no Direito português. Realmente, CAPELO DE SOUZA salienta que “também podem ser judicialmente ordenadas providências preventivas de violações de personalidade que proíbam e sancionem a colocação ou ulterior utilização de maquinismos ou fontes produtores de ruídos, cheiros, fumos e outros poluentes prejudiciais ao repouso, à saúde, ao sossego ou a qualidade de vida de vizinhos”.26[26]
Além das ações que visam impedir a continuidade da prática do ato nocivo, é admissível a condenação em danos morais pela violação a esse direito de personalidade.
De fato, com bem disse RUI CELSO REALI FRAGOSO, “todo e qualquer dano causado a alguém ou a seu patrimônio deve ser indenizado. O dinheiro
26[26] ob.cit., pág. 475
possui um valor permutativo podendo não só abrandar o prejuízo moral, como, também servir de desestímulo de atos abusivos ou excessivos”.27[27]
Como vimos, os danos causados à saúde das vítimas pela perturbação do sossego são seríssimos e possuem, não só conseqüências materiais, mas principalmente, morais. A Constituição Federal, a esse respeito, assegura, expressamente, a indenização pelo dano material e moral, conforme disposto no inciso X, do artigo 5º.
Atualmente, encontra-se superada a controvérsia a respeito da indenização pelo dano moral e, portanto, estando comprovada a existência da perturbação do sossego e os malefícios que dela decorreram, pode o causador do dano ser condenado a indenizar o dano moral causado.
VII - Conclusão
Após essa análise da natureza jurídica do direito ao sossego, verificamos que se trata de espécie de direito de personalidade, que pode ser classificado como modalidade do direito à vida e que sua violação fere, também, o direito à saúde, tendo em vista os inúmeros danos causados ao organismo das pessoas atingidas.
Assim, o artigo 554 do Código Civil de 1916, muito embora esteja elencado como restrições ao uso da propriedade, no campo dos direitos reais, tutela direitos de personalidade, como a saúde, o sossego e a segurança.
Ademais, verificamos que os conflitos entre o direito ao sossego, enquanto direito de personalidade, e direitos de outras espécies, como o direito de
27[27] ob.cit., pág. 128
propriedade, devem ser resolvidos, sobrepondo o direito de personalidade nos casos de uso nocivo da propriedade.
Verificamos, ainda, que esses conflitos existem em outras relações, que não às de vizinhança, como no caso das relações hierárquicas de trabalho em que o chefe abusa de seu direito para incomodar o sossego de seu funcionário.
Conclui-se, portanto, que todos devem respeitar esses bens jurídicos inerentes a cada indivíduo, sendo assegurada ao titular desses direitos individuais a defesa contra violações praticadas terceiros e, finalmente, constatamos que o conflito entre o direito ao sossego e o progresso das cidades é, de fato, importantíssimo para a aferição da normalidade da perturbação ao sossego.
Quanto às limitações ao sossego causadas pelos ruídos, odores, poluentes inerentes às grandes cidades, notamos que causam inconformismos desde 1931. Contudo, esse combate aos malefícios do progresso estimula as atitudes da sociedade para criar mecanismos jurídicos e administrativos para que nossa cidade seja transformada em um local mais aprazível, acomodando, assim, o conflito existente entre o direito ao sossego e o progresso.