quinta-feira, 23 de julho de 2009

O DESPERTAR DA CIDADANIA NO PORTUGAL OITOCENTISTA

O despontar da cidadania no Portugal Oitocentista*

Maria Neves Leal Gonçalves**
1.

O carácter evolutivo do conceito de cidadania
A moderna concepção liberal de cidadania1, que remonta à Revolução Francesa e à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, consubstancia a vigência dos direitos naturais sendo a apreensão conceptual destes direitos e a vontade de os salvaguardar que permitem a construção de um mundo novo - a soberania da nação sustentada pelo direito natural. O núcleo da modernidade política radica, assim, na passagem da sujeição à cidadania a qual se materializa pelo exercício dos direitos, com destaque para o acto eleitoral, que marcou, em última instância, a passagem da soberania régia para a soberania da nação2.
Com efeito, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão circunscreve os direitos e deveres do homem à matriz estruturante da Constituição e configura-os como contributo para a felicidade de todos os homens:
“Les représentants du peuple français ont résolu dans une Déclaration solennelle les droits naturels, inaliénables et sacrés de l’homme, afin que cette Déclaration, constamment présente à tous les membres du corps social, leur rappelle sans cesse leurs droits et leurs devoirs (…) afin que les réclamations des citoyens, fondées désormais sur des principes simples et incontestables, tournent au maintien de la Constitution et au bonheur de tous” (Jaume, 1989, pp.11-12).
Ao analisarmos, ainda que sumariamente, o próprio título, Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, depreendemos uma certa distinção entre homem e cidadão - o Homem será o indivíduo, portador de direitos naturais, e o Cidadão será aquele a quem compete exercer o direito e o dever de participar na vida política ou fazendo leis ou elegendo os seus representantes. Fernandes Fafe sintetiza esta dualidade:
____________________
* Este artigo é a súmula de um capítulo da dissertação de Mestrado intitulada Os Primórdios da Educação Cívica em Portugal, apresentada na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
** Membro do UID- Observatório de Políticas da Educação e de Contextos Educativos, Universidade Lusófona, Lisboa.

1 “Temos assim dois Homens no Homem. O Homem-Indivíduo, o portador de direitos naturais, e o Homem-Cidadão, o autor das leis que os limitam. Dois homens a que correspondem dois espaços: o privado, de que as leis traçam as fronteiras, e o público, onde se elaboram as leis, onde se dá o debate político, cujo critério é o do interesse geral, a que se devem submeter os interesses particulares” (1999, p. 131).
Esta dualidade implícita ao conceito de cidadania foi percepcionada pelos liberais oitocentistas ao tentarem caracterizar o verdadeiro cidadão. Vejamos, por exemplo, como Luís Francisco Midosi (1796-1877), no Catecismo constitucional oferecido às cortes da Nação Portuguesa (1860) na resposta à questão “o que quer dizer cidadão”, o autor introduz a dicotomia inclusão/exclusão presente na configuração da cidadania na sociedade do séc. XIX3:
“No sistema político dá-se esta denominação [cidadão] a todos os indivíduos da sociedade, que gozam do direito de votar nas eleições das cortes, e demais corpos electivos do Estado (…) nem todos os portugueses gozam do direito de votar; o nome de português é genérico, e designa apenas a pátria do indivíduo; porém a de cidadão significa mais alguma coisa, e traz anexo a si o gozo e regalia de um direito, que só pertence aos que contribuem para as despesas do Estado ou sociedade, ou têm certas habilitações e não estão indiciados em crimes” (1860, pp. 23-24) 4.
Ainda inserida na dualidade subjacente à concepção de cidadania, também a obra O cidadão lusitano (1822), de Inocêncio António de Miranda, o célebre Abade de Medrões (1761-1836), se enquadra na linha de pensamento de Midosi. Atente-se no curioso diálogo entre as personagens que integram a obra, o Abade Roberto e D. Júlio:
“D. Júlio - Todo o português é cidadão?
Roberto - Ainda que todos os portugueses se podem chamar cidadãos, porque todos são iguais diante da lei, e todos obrigados a contribuir para o bem da pátria, segundo as suas faculdades, contudo este honrado nome em rigor só compete àquele, que tendo 25 anos completos, tiver algum estabelecimento ou modo de vida, e estiver na livre fruição de seus direitos.
D. Júlio - Quais as virtudes, que devem ornar o cidadão lusitano?
Roberto - O seu primeiro dever é ser fiel à constituição” (1822, p. 12).
Para o Abade de Medrões, todos os portugueses são iguais perante a lei e todos devem sobrepor os interesses da pátria aos interesses individuais; no entanto, o nome de cidadão só compete àquele que tiver vinte e cinco anos completos, possuir alguns rendimentos e modo de subsistência, for fiel à Constituição e capaz, se necessário, de a defender com coragem e prontidão.
Apesar da existência de alguma exclusão patente no conceito do cidadão constitucional, os vintistas portugueses, imbuídos do espírito revolucionário, enunciavam como “as verdadeiras qualidades dum cidadão as suas virtudes sociais - Luzes, Amor da Pátria e

2 Liberdade”5 porque “o cidadão (...) digno deste nome, saberá sempre respeitar a majestade da Moral, da Nação e da Religião”6.
Neste contexto, não podemos deixar de reiterar que a ideologia liberal, no que respeita ao exercício de cidadania, está impregnada de dualismos. Conceição Nogueira e Isabel Silva (2001) aludem ao dualismo presente na relação entre indivíduo e comunidade.
A esta luz, se bem que os direitos individuais possibilitem ao cidadão o espaço para o desenvolvimento pessoal, a autonomia individual é, na lógica da cidadania liberal, condicionada pela ideia de comunidade uma vez que o bem comum se sobrepõe aos interesses individuais.
Um outro dualismo diz respeito à omissão dos direitos das mulheres, pois, como sabemos, ao longo da história e do desenvolvimento da cidadania e dos valores liberais, a questão da desigualdade entre sexos ou era omitida ou, então, se era admitida, incidia sempre na dependência feminina face ao homem:
“No liberalismo, os homens são vistos como actores políticos e económicos, enquanto as mulheres são vistas como prestadoras de cuidados, mais do que cidadãs. (...) A liberdade anunciada pela lógica liberal era apenas para ser vivida na esfera pública, entre homens, e nunca na esfera privada, local onde a relação entre os sexos foi sempre desigual” (Nogueira & Silva, 2001, p. 53).
A desigualdade entre sexos é particularmente difícil de justificar através dos princípios liberais, já que estes se baseavam numa doutrina igualitária. Só no século XX, é que o desenvolvimento dos direitos de cidadania foram progressivamente extensíveis às mulheres com a sua entrada no mercado de trabalho e na política.
2. O progressivo alargamento semântico do conceito de cidadania
A configuração da categoria de cidadania política começou a emergir com a Revolução Francesa. Mougniotte (1991), num interessante estudo sobre o início da disciplina de Instrução Cívica, em França, sintetiza o objectivo dos republicanos: "former le citoyen d' un état populaire et libre" (p.182) sendo os professores incumbidos de fazer "de bons écoliers, de bons soldats, de bons électeurs, de bons ouvriers et de bons paysans" (p. 64). Yves Déloye também acentua a importância para os republicanos franceses de 1789 de formar eleitores instruídos e cidadãos capazes de terem uma opinião política esclarecida: “L’éducation de la démocratie devient le complément nécessaire au suffrage universel. (…) L’ apprentissage de cet acte [acte du vote] est considéré comme une étape essentielle à la formation du citoyen” (1994, pp. 122-123).

3 Segundo Mozzicafreddo (1997), a cidadania, enquanto categoria política e social constitutiva das sociedades modernas, surge a partir da ideia de que os indivíduos são membros de uma comunidade política e traduziu-se, em primeiro lugar, na defesa da liberdade7. O cidadão dos primórdios do liberalismo assume-se como um sujeito de direitos e deveres face ao Estado. Os primeiros direitos de cidadania foram os civis, os chamados direitos da primeira geração - direito de liberdade de expressão, de consciência e de livre opinião - que serviam para defender o indivíduo da arbitrariedade do Estado.
No decurso do séc. XIX, com a afirmação dos chamados direitos de segunda geração - direito de sufrágio, direito de associação profissional e sindical e direito de igual acesso a cargos políticos - a cidadania tornou-se política.
Nos anos 20 do séc. XX, a cidadania vai conhecer uma nova evolução com a incorporação dos direitos da terceira geração - os direitos sociais8: direito ao bem-estar e à segurança económica e direito de viver a vida de acordo com padrões de dignidade socialmente aceites. A cidadania torna-se também social (Mozzicafreddo, 1997).
Por sua vez, a globalização9 e o localismo estão a dar à cidadania novos significados emergentes e novas configurações sociais e culturais. Nas sociedades de consumo de hoje em dia, a cidadania traduz cada vez mais o valor da qualidade de vida, do respeito pelo Outro, do respeito por si próprio e pela natureza. Como há novas valências associadas ao conceito de cidadania há também novos direitos, como o direito ao ambiente, à preservação do património e à qualidade de vida urbana. Estes direitos pressupõem enquadramentos normativos que “visem a produção de medidas legislativas e administrativas de alargamento das oportunidades que contribuem para a produção de identidades sociais e culturais dos indivíduos” (Mozzicafreddo, 1997, nota 5). Estes novos direitos não se satisfazem no Estado-Nação10 e a cidadania deixou de se identificar com a nacionalidade. Nas sociedades multiculturais, a cidadania polariza vários sentidos configurando cidadanias plurinacionais e pluriculturais e cidadanias múltiplas, se pensarmos, no quadro da União Europeia, na acumulação da cidadania europeia com as cidadanias nacionais. Jacques-André Tschoumy fala, de uma forma metafórica e antitética, da cidadania composta, característica da nova modernidade:
“A antiga modernidade consistia em meter a vida na terra. A nova modernidade despir-se-á desta cidadania terrena, e conjugar-se-á no plural, com «s»: «ESPAÇOS EUROPAS!». A inteligência da Europa será esse espaço pluridimensional que se libertará da confiscação da cidadania pelo Estado através de uma pertença a diversas cidadanias, compostas, pluridimensionais” (1995, pp.31-32).
Também Manzini-Covre (1994), num interessante livro sobre a cidadania, distingue diversas configurações deste conceito - cidadania passiva, cidadania activa e cidadania nova.

4 A cidadania que se centra no ter é considerada passiva e consumista, na medida em que se coaduna com os interesses dominantes e os indivíduos deixam-se usar pelo Estado. Por sua vez, a cidadania activa, ao centrar-se no agir, é caracterizada pelo modo activo e os sujeitos estabelecem o controlo de como reivindicar políticas de atendimento das suas necessidades: “os sujeitos existem, procuram construir as suas vidas, criam uma determinada identidade que lhes dá segurança” (p. 165). A cidadania nova é centrada no sentir, sendo o sujeito quem constrói e reconstrói a sua subjectividade e a sua cidadania.
Alain Touraine (1998), por sua vez, introduz e distingue dois conceitos de cidadania: a cidadania comunitária e os direitos do homem e do cidadão. Segundo este sociólogo francês, a categoria de cidadania pressupõe que se viva num regime democrático11. Ser democrata é ser contra toda e qualquer espécie de totalitarismo na medida em que este destrói não só a democracia, os movimentos e os actores sociais, históricos ou culturais, como destrói a dignidade do ser humano. Alain Touraine não hesita em identificar o totalitarismo como o problema fulcral do século XX: “O totalitarismo é o problema central do século XX, como a miséria foi o do século XIX. (…) O totalitarismo foi a forma derradeira e extrema de destruição da Nação como comunidade de cidadãos” (1998, p. 299).
Neste sentido, a categoria sociológica da cidadania pressupõe a vivência numa sociedade democrata e os indivíduos têm o direito e o dever de participar no exercício do poder político através dos actos eleitorais. Mozzicafreddo (1997) estabelece uma relação entre a categoria sociológica da cidadania e a configuração política do Estado-Providência.
Actualmente, com o processo de globalização12 – que põe em crise o Estado-Providência e torna os Estados nacionais impotentes para solucionar os problemas dela decorrentes (acentuação das desigualdades sociais, fragilização do tecido social, desregulamentação e instabilidade dos mercados) – urge redimensionar o conceito de cidadania. Braga da Cruz sintetiza bem a plurissignificação da cidadania:
“A cidadania é pois um conceito polissémico e uma realidade plurifacetada. Cidadania quer dizer liberdade, participação igualitária, solidariedade social, qualidade de vida. Cidadania quer também dizer nacionalismo e patriotismo enquanto pressupôs o Estado-Nação e a sua defesa, identificação com a comunidade nacional, com a sua tradição cultural e os seus valores sociais. São esses valores de cidadania, desde a Revolução Francesa, valores que não podem encontrar mais satisfação senão num quadro muito variado e pluriforme de instâncias sociais” (1998, p. 42).
A recontextualização sumária das diferentes configurações da cidadania - enquanto modo de estar, valorar, relacionar-se e agir em sociedade - permite-nos centrar a matriz estruturante do conceito de cidadão na correlação dos direitos e deveres cívicos. Para intervir

5 e participar na vida política foi preciso rejeitar os valores da sociedade do Antigo Regime e comungar dos ideais do Liberalismo. A esta luz, compreendemos a pertinência e a actualidade da mensagem vintista de um avisado articulista de O Cidadão Literato (1821): “Só no pleno exercício de nossos direitos, de nossos deveres e de nossos sentimentos, poderemos ser felizes, único termo, aonde se encaminham todos os nossos pensamentos”13.
3. O despontar da cidadania no vintismo
“Imbuídos das ideias liberais que os livros e os jornais franceses inculcaram por toda a parte no espírito dos homens (...) os nossos pais prepararam, por meio de sociedades secretas, uma revolução liberal que estalou em 1820. (...) Cada dia trazia a sua festa nova, era uma chuva cerrada de hinos, de sonetos, de canções, de dramas”14. Foi assim que Alexandre Herculano (1810-1877) nos descreveu a origem da nova ordem liberal15 e as expressões e representações estimulantes que a acompanharam. Surgiram, pois - como aliás a pena magistral do historiador nos indica - múltiplos textos de registos de escrita diversos, que são um significativo indicador da cultura vintista. A par da literatura de opúsculo e panfletária, com intuitos formativos e de orientação de opinião, vem a lume uma pluralidade de trovas e de peças dramáticas que aliavam o entretenimento à mensagem política numa clara militância em torno dos novos conteúdos liberais e constitucionais. Para começar, ilustremos com um segmento textual de uma obra de Almeida Garrett (1799-1854) - cujo título nos situa de imediato no vintismo - O corcunda por amor (1821)16. Eleutério, o protagonista, é o protótipo do estudante de Coimbra, adepto fervoroso do movimento liberal e que está profundamente apaixonado por Carlota, filha de um partidário acérrimo do Antigo Regime, o doutor Lapafúncio. Na tentativa de ludibriar e captar as simpatias do pai da sua amada - cuja matriz de pensamento se inseria em valores absolutistas e tradicionalistas - decide mostrar os seus dotes oratórios e, com gravidade, começa a dissertar um fraseado tão ao gosto dos revolucionários da época: “Veja, meu doutor, se isto agrada a ninguém: todos iguais perante a lei, tolerância, liberdade de imprensa, segurança de propriedade, abolição da santa inquisição, extinção de caudelarias, coutadas, direitos banais” (p.114)17. Nesta peça – em que se alicerçam as teias do amor e da paixão com a nova conjuntura sócio-política - Garrett recorre a um registo parodiante para veicular as duas mentalidades coexistentes na época (absolutistas e liberais) e exaltar a consciencialização cívica que, com o triunfo do liberalismo18, começava a despontar19.
Paralelamente a este e a outros registos ficcionais, assistimos à expansão de uma categoria de textos políticos (Cartilhas, Catecismos constitucionais, Manuais políticos,…) que visam intervir no debate público de ideias sobre a organização da sociedade e do próprio
6 poder político. O levantamento deste tipo de obras é revelador dos motivos de interesse de produtores e receptores de mensagens de cariz político e jurídico e do desejo de formar o cidadão e de se constituir um governo justo (que proceda a alterações sociais, políticas e educacionais).
Essas obras são o testemunho de uma época que queria construir um Estado liberal assente na consciência da necessidade dos cidadãos poderem participar na vida pública e política da Nação. Essas obras pretendiam igualmente esclarecer as bases do funcionamento da sociedade e da política liberais portuguesas e dar a conhecer as regras universais que deveriam nortear a acção do Estado. Essas obras participam ainda no ambiente revolucionário português e procuram fundamento para as reformas e inovações de que o país carecia: “A leitura política em dez anos transformara-se completamente. Os seus valores, as suas referências são agora os da construção do estado liberal. Estamos pois, perante a identificação de uma história política com uma história da leitura política. Quanto mais a leitura se aproxima da consciência da necessidade de acção, e isso sucede agora [com a Revolução Liberal], tanto menos se pode distinguir leitura e intervenção” (Lisboa, 1991, p. 185). Essas obras concorreram, em última análise, para “a cultura política vintista que contribuiu inegavelmente para uma definição da nossa identidade nacional através da construção da cidadania” (Vargues, 1997, p. 26).
Com efeito, no início do liberalismo, a ilustração era encarada como condição indispensável à manutenção do próprio regime, porque se considerava necessário instruir o povo para melhor compreender as novas instituições e participar conscientemente na vida política nacional e, consequentemente, formar cidadãos intervenientes na vida política20.
Qual a origem desta nova consciência cívica? Devemos procurá-la no Século das Luzes que começou a delinear um novo tipo de homem que estrutura a vida já não em função de ritos religiosos mas norteado por valores como a razão, a educação, o poder e o saber21. O desejo de tornar-se membro de uma comunidade e de participar activamente na vida política faz emergir o conceito de cidadão que tem deveres e direitos para com a sociedade. Esse conceito opõe-se ao de súbdito. É nesta linha de pensamento que Isabel Vargues (1997) defende que no vintismo o novo estatuto social alcançado pelo cidadão se opõe ao estatuto de «servo» ou «de vassalo» e que estas últimas duas palavras foram censuradas em 1820 e 1821 e consideradas mesmo anticonstitucionais.
Conscientes de que o livro e a imprensa são vectores imprescindíveis para a mudança das mentalidades, muitos intelectuais vintistas empenharam-se, através da escrita, em possibilitar ao leitor o conhecimento dos mecanismos de funcionamento da vida pública portuguesa.
7 No ano em que eclodiu a revolução vintista, surge no panorama editorial português o Manual político do cidadão constitucional (1820), de autor anónimo. Este livro, que está construído na base de pergunta/resposta - seguindo a orientação dos catecismos setecentistas - evidencia bem a intenção de esclarecer e instruir o leitor e dinamizar a opinião pública para os princípios políticos defendidos pela cultura liberal. Extractemos algumas das questões colocadas no manual em análise: “Que cousa é a Constituição? Quais são as principais formas de governo? O que é a liberdade natural? O que entendeis por liberdade de opiniões?” (pp. 4-6).
Recorrendo à metáfora da máquina, o autor considera útil e desejável que a sociedade esteja hierarquizada e estratificada e sustenta que haja diferença entre as classes. Veja-se o seguinte excerto:
“Pergunta: Por igualdade entre os cidadãos entendeis vós que não haja diferença alguma entre as classes, nem proeminência de umas sobre as outras?
Resposta - Não, porque uma semelhante igualdade seria impossível, e mesmo não seria útil. Assim como numa máquina as rodas são de diversos tamanhos e servem para diferentes usos, assim as diferentes classes dos Cidadãos estão umas subordinadas às outras, e têm umas para com as outras diferentes relações. Entendo, sim, por igualdade entre os Cidadãos, a igualdade perante a lei” (1821, p. 12).
No ano seguinte, um articulista de O Cidadão Literato (1821)22, entusiasmado com “a nova era que deve marcar novos Fados”, sustenta que “todos os cidadãos serão chamados a ter, conforme suas faculdades, maior ou menor acção nos negócios públicos”; todavia para que a “igualdade política permaneça, são indispensáveis as Luzes e bons costumes”, porque se “estas duas qualidades se não reunirem nos Magistrados Constitucionais” o país tornará “à escravidão e à miséria”23. Os coordenadores deste periódico, apologistas da imprensa livre, consideram que a liberdade de imprensa “é o primeiro móbil da universalidade” para que as “Ciências e a Literatura façam assunto do comum interesse, se aprofundem e espalhem os conhecimentos dos deveres e direitos recíprocos dos Povos”. Argumentação de teor semelhante sobre a liberdade de imprensa, vamos encontrá-la em Manuel Fernandes Tomás (1771-1822)24, num discurso proferido nas Cortes Gerais em 14 de Fevereiro de 1821:
“A liberdade de imprensa traz consigo males, e males não pequenos; mas os que resultam da censura prévia são mais e maiores: aqueles podem remediar-se em grande parte, podem até evitar-se de modo que a sociedade tenha pouco que sentir; estes não porque eu não concebo a possibilidade de existir um governo constitucional ao modo que a Nação o espera e deseja, sem a liberdade de imprensa”25.
8 Em 1821, é editado o Catecismo constitucional oferecido às cortes da Nação Portuguesa. O autor, José Maria de Beja26, que se autoproclama “cidadão constitucional”, informa os potenciais leitores dos objectivos que o levaram a escrever: “os que não procuram em um Livro senão o divertimento, e que nada sério querem encontrar, podem dispensar-se de ler minha Oração; pois que ela só tem a demonstrar a obrigação de todo o bom Cidadão, que compõe a sociedade política de tempo dourado em que felizmente vamos entrar” (p. 2). Este opúsculo é oferecido ao “Augusto Congresso”27 de que o autor faz parte, desejando com este escrito, ser útil à nação. A economia textual deste livro centra-se na “instrução política do cidadão”, com enfoque nos seus direitos e deveres e na definição das leis naturais, físicas e morais28. José Maria Beja conclui este seu Catecismo com a apologia da monarquia, das cortes, da religião, da Constituição: “Vivam as Cortes, Viva El-Rei D. João VI, e sua dinastia, Viva a Religião, e a nossa Liberal Constituição” (p. 30).
Em 1822, é publicada uma obra que, segundo Reis Torgal e Isabel Vargues (1984), procurava pôr de acordo a Igreja com a ordem constitucional e que, certamente por isso, levantou celeuma na sociedade eclesiástica vintista. A obra intitula-se O cidadão lusitano e, como já foi dito, escrita por Inocêncio António de Miranda, o célebre Abade de Medrões (1761-1836). Deste opúsculo, apresentado às Cortes, em 14 de Março de 1822, foram oferecidos e distribuídos aos deputados cento e vinte exemplares. No ano em que foi publicado, conheceu duas edições e, segundo o autor, tinha como missão:
“Mostrar aos meus amados concidadãos o que é a constituição, e os bens, que ela deve produzir; a fim de que possam fixar as suas ideias. (…) As minhas vistas não têm outro fim que ilustrar o povo menos instruído, para que desenvolvido das trevas, em que se acha confundido pelo delírio dos periódicos, possa viver desde logo no conhecimento dos frutos da constituição, e dos deveres do cidadão” (p. VIII).
O Abade de Medrões constrói o seu texto na base de um diálogo entre um liberal, o abade Roberto, deputado das Cortes gerais, extraordinárias e constituintes da Nação portuguesa e um servil, D. Júlio. As respostas às questões colocadas são elucidativas do intuito formativo da obra. À pergunta “Quais as virtudes, que devem ornar o cidadão lusitano?”, o autor aproveita para enaltecer a Constituição e assinalar que “o primeiro dever é ser fiel à constituição, (...) sustentá-la com todas as suas forças, e defendê-la corajosamente contra todos aqueles, que pretenderem impugná-la” (p. 12). Apologista convicto da Monarquia constitucional, o autor opta por enumerar “os males que padeceu Portugal no tempo do antigo governo” numa clara e inequívoca divulgação dos valores liberais. Este opúsculo, paradigmático do panfletismo vintista, despoletou diversas críticas e motivou uma
9 acesa controvérsia. A polémica em torno deste livro29evidencia o clima de potencial discórdia entre os dois alinhamentos ideológicos vigentes na época - de um lado, os absolutistas mais próximos do Antigo Regime e da soberania régia e, do outro, os constitucionais, que alinhavam pela soberania da nação. Aliás, o próprio autor parece ter tido consciência da contestação que este seu livro poderia originar pois, na Introdução, adverte, prudentemente, o leitor: “Não ignoro que este opúsculo há-de achar muitos censores, que não perdoarão, nem dissimularão os meus erros (...) mas eu não escrevo para os sábios; esses não precisam das minhas instruções” (p. VIII). A controvérsia gerada contra O cidadão lusitano deve-se também ao facto do seu autor ter sido um dos membros do clero que aderiu e defendeu a nova ordem liberal bem como fez propostas concretas no sentido de reformar a instituição eclesiástica de acordo com o movimento revolucionário liberal30. Luís Reis Torgal assinala neste sentido a importância da imprensa contra-revolucionária que visava inverter o processo revolucionário liberal em curso e criar uma consciência derrotista relativamente às novas instituições:
“A imprensa contra-revolucionária, no decorrer do vintismo, através dos seus panfletos e dos seus jornais, jogou um papel de primeiro plano no processo de desagregação do sistema liberal, carrilando ideias de grande embate e, sobretudo, críticas bem dirigidas, que criavam uma consciência derrotista da situação, que crescentemente se agravava e que terminou no golpe de Vila Franca” (1981, p. 322).
Com efeito, o Abade de Medrões veiculou, na sua obra, ideias que suscitaram ataques da ala contra-revolucionária da sociedade portuguesa, das quais salientaremos a prática da fraternidade, o auxílio mútuo e filantrópico e a reabilitação dos mações pelo seu civismo e pela sua neutralidade religiosa: “Se o cristão pode ser mação, sem deixar de ser cristão. Se o protestante pode ser mação sem deixar de ser protestante, em uma palavra, se é permitido a cada um seguir a religião em que foi criado, sem que para ser mação, seja necessário mudar de religião, é visível a todas as luzes, que esta Sociedade [Maçónica] não tem nada com a Religião” (p. 28). È neste sentido que se compreende que a obra O Cidadão Lusitano tenha sido proibida em Portugal quando D. Miguel subiu ao poder e condenada por Roma em 1826.
Em 1827, um autor (que assina D.B.A.C.C.) publica o Catecismo constitucional segundo o espirito, e a letra da Carta Constitucional, e conforme ao governo de Portugal. Este livro, construído na base de um diálogo entre um mestre e um discípulo, aborda, entre outras questões, a oposição entre os governos arbitrários e os governos constitucionais, pretendendo demonstrar que a melhor forma de governo é a constitucional:
10 “Mestre - Dizei-me em que consiste a maior felicidade de um povo?
Discípulo - Na maior abundância possível dos objectos próprios para sua subsistência, e na liberdade de os gozar (...).
Mestre - Por que razão os Governos Constitucionais estão em oposição com os Governos arbitrários?
Discípulo - Os governos constitucionais são os mais conformes ao espírito e à letra dos Livros Divinos, da lei natural, e ao fim social para que Deus o criou (…).
Mestre - Por que razão tendes dito que os governos constitucionais são os melhores, por serem Governos da Lei?
Discípulo - Porque a Lei manda o bem, proíbe o que é indiferente, castiga a transgressão, e recompensa a obediência” (pp. 4-13).
Para além destas obras que, ao desenharem uma nova consciência do papel da lei, contribuem para que o cidadão seja munido dos instrumentos necessários para a compreensão das regras de um Governo constitucional e de um Estado liberal, surgiu também alguma literatura joco-séria, ilustradora, a seu modo, de uma faceta da cultura política vintista, cuja mensagem tem também um impacte considerável junto dos receptores. Estamos a referir-nos, por exemplo, ao livro O cidadão liberal rindo com a sua sanfona dos corcundas portugueses (1822), escrito, em poesia, por um tal F. J. B. que pretende escalpelizar alguns dos tipos sociais (inquisidores, magistrados, abades, fidalgos) incapazes de compreenderem os valores da Revolução de 1820 e, por isso, designados metaforicamente por corcundas. O tom irónico, por vezes cáustico, das quadras faz-nos perceber não só o alcance crítico como a exaltação dos ideais do liberalismo. Do citado livro de trovas, extractemos as seguintes:
“O mau cidadão não olha
Senão ao bem pessoal:
Odeia, e vê com maus olhos,
Toda a ventura geral. (…)
Toca a rir da fradaria
Dos corcundas monacais:
Dessa chusma fraudulenta,
Tão oposta aos Liberais. (…)
Haja cautela, olho vivo,
Com estes Nobres Meninos;
Sejam livres Cidadãos,
Mas não façam desatinos. (…)
Heróica nação liberta,
Livre do corcunda mal:
11 Acolhe as justas rizadas
D’um cidadão liberal”31.
A apologia e a exaltação dos ideais do liberalismo tiveram um tratamento poético, sendo temas de sonetos e odes. Vejamos a conotação sacralizante atribuída à Constituição:
“Santa Constituição, só vis tiranos
Poderão recusar teu dom sagrado;
Pedra fundamental tu és do Estado,
Tu és pedra de toque dos sob’ranos”32
A onda contra-revolucionária33 em A Navalha de Figaró34 também respondia em versos de pé-quebrado, num registo zombeteiro da Constituição e da nova ordem liberal:
“Todos falam sem saber
O que é Constituição
É, eu já vos vou dizer,
Um logro para a Nação”35.
A oposição anti-liberal contra deputados e ministros é também visível neste pasquim36:
“Estes pérfidos no Porto nos clamaram Liberdade.
Com esta no Brasil ensinaram a perder a Fidelidade.
Somos portanto desgraçados.
Só pode haver remédio enforcando os deputados.
Estes ladrões esfaimados.
Tigres de província têm roubado o quanto possuía a Nação”37.
4. A persistência da consciência cívica na sociedade oitocentista e na 1ª década do séc. XX.
Em 1860, Luís Francisco Midosi (1796-1877) publica o Catecismo constitucional para instrução da mocidade38, cujo prefácio é muito curioso porque não só explicita claramente o seu objectivo - “Escrever um livrinho que contivesse o essencial da lei fundamental, a Carta Constitucional” -, como indica e justifica o método usado - “adoptámos o método de perguntas e respostas, por o julgarmos o mais fácil e apropriado para se decorar; e se em alguns pontos fomos resumidos, foi por entendermos conveniente deixar latitude bastante ao professor consciencioso, para nas suas explicações orais os poder ampliar conforme a
12 capacidade de cada um dos seus alunos” (pp. 6- 7). Na Introdução, o autor afirma que só a uma nação instruída poderá ser livre e incapaz de suportar o despotismo. Na 1ª parte deste catecismo, o autor pretende responder a diversas perguntas de que destacamos as seguintes: O que é a sociedade, qual a diferença entre liberdade natural e liberdade civil, qual o objecto da Constituição, o que é o governo, quais as formas de governo, o que são as cortes, quem as compõe, qual a diferença entre a moral civil39 e a moral religiosa40 e outras questões similares. Todas estas perguntas, de cariz jurídico, político e cívico, denotam a preocupação de esclarecer os leitores sobre as bases de funcionamento da sociedade e da política portuguesas.
Em 1873, António José da Silva Teixeira decide reimprimir a obra O cidadão lusitano. O editor enuncia, num tom metafórico, o objectivo da reimpressão: “opor uma barreira à hidra reaccionária, que com as suas cem cabeças, quer de novo engolfar-nos na guerra civil, com todo o cortejo de desgraças e calamidades, para depois, sobre os destroços, arvorar, como meio de governo, as fogueiras da satânica inquisição, as forcas, os confiscos, as masmorras e os degredos” (p. VI). Elogia o Abade de Medrões que com “talento e saber” muito se esforçou “nas tribunas profana e sagrada e na imprensa, em favor da liberdade”, muito combateu “o fanatismo e a superstição religiosa” e muito “desmascarou os ardis com que os adeptos do despotismo, escudados na tolerância da Constituição, procuravam por todas as formas reagir contra a nova forma de governo” (pp. III- IV). O apelo que faz à mobilização da leitura desta obra é sintomático do temor que então reinava: “Que todos os cidadãos a leiam sem preocupação, pois só assim a reacção será rechaçada, e os seus tenebrosos planos aniquilados, com o que nos daremos por bem retribuídos do serviço que empreendemos” (p. VI).
A leitura política, como assinala Luís Lisboa (1991), é apanágio do século XIX, tendo sido a alvorada de Oitocentos a especificar os gostos e as tendências no domínio político. Esta apetência pela leitura política e cívica continua, porém, na primeira década do séc. XX. Neste sentido, não nos surpreende a produção e distribuição gratuita de Folhetos para o povo com o objectivo de o elucidar sobre o funcionamento das instituições e sobre as atribuições e competências dos diversos órgãos de soberania. Ilustremos esta linha de pensamento com o folheto Cartilha do povo ou breve compêndio dos seus direitos e obrigações (1901), da autoria de Trindade Coelho (1868-1908). A opção discursiva deste livro - que ostenta na capa “distribuído de graça” - assenta num tom coloquial e empático com o leitor, convidando-o para uma leitura amena e instrutiva, à maneira de uma conversa:
“Ora lembram-se da parábola dos sete vimes e da história daquele honrado lavrador e dos seus sete filhos e da maneira como enriqueceram? Pois agora vos vou contar outra conversa em que os irmãos estiveram uma noite, todos ao borralho - e a rirem-se muito, por sinal, com o que lhes dizia o mais velho” (p.1).
13 Esta forma de elaboração remete-nos para um ambiente popular - como aliás se insinua no próprio título – e para um conteúdo cujo itinerário de saberes gira em torno quer dos direitos e deveres do cidadão quer de conceitos como a pátria, a Constituição, os impostos e as eleições.
Mantendo um registo dialogante e com sabor popular, emergem, da arquitectura discursiva deste folheto, duas componentes-chave: a apologia da instrução e a manipulação e a corrupção dos actos eleitorais. Só um povo instruído é capaz de “diferenciar o bom do mau, o trigo do joio, o justo do injusto, o que convém do que não convém”, daí o apelo insistente e metafórico do narrador: “aprenda o povo e já governa (...) em aprendendo está salvo: as portas e janelas abriram-se, e entrou dentro muito ar e muita luz, que é como quem diz: entrou o bem e a liberdade!” (p. 30). Só um povo instruído é capaz de votar livre e conscientemente nos seus representantes desconfiando das promessas eleitorais: “Que lhe abaixam na contribuição; que lhe livram o filho de ir para soldado; que lhe dão um emprego e ao filho outro” (p. 20). Só um povo instruído é capaz de não ceder às chantagens dos caciques locais: “Que não votasse, que aquelas duas moedas que devia ao usurário tinha de as pagar com língua de palmo, ou senão que esperasse a penhora” (p. 19).
Passados alguns anos, e num registo de escrito diverso, é dado à estampa o Manual político do cidadão português (1906) igualmente de Trindade Coelho. Esta obra teve um êxito tal que, no final do ano de 1906 (fora editada em Julho), já a primeira edição estava esgotada. Na Advertência à 2ª edição o autor assinala que é necessário:
“Educar para criar uma opinião individual consciente e uma opinião pública vigorosa, - ou seja, para formar o cidadão e organizar a nação soberana; pois se não há cidadão sem uma justa e exacta consciência dos seus direitos e dos seus deveres, também não há nem pode haver nação verdadeiramente soberana sem cidadãos instruídos e educados” (1908, p. VII).
Nessa mesma Advertência, o autor demonstra o seu contentamento pelo facto de a 1ª edição se ter esgotado em menos de um ano e apercebe-se da influência do livro na discussão de temas de índole educativa, jurídica, política e cívica. Houve, com efeito, na imprensa da época, um grande debate sobre a problemática da educação cívica, da qual o próprio autor sublinha os objectivos: “A instrução cívica tem por fim formar o cidadão, ensinando-o a conhecer as instituições do seu país, e ministrando-lhe regras de conduta, firmes e seguras, que o dirijam na vida pública” (1908, pp. 2-3).
O dispositivo estruturante do conteúdo e da economia textual desta obra de Trindade Coelho centra-se na missão de “educar para criar uma opinião individual consciente e uma opinião pública vigorosa” ou seja “formar o cidadão e organizar a nação soberana”; pois para
14 haver uma “nação verdadeiramente soberana” é imprescindível que haja “cidadãos instruídos e educados” e que possuam “uma justa e exacta consciência dos seus direitos e deveres” (p.II). Emerge ao longo do enunciado discursivo a definição de conceitos (liberdade, Constituição, patriotismo, civismo e outros) e a explicitação da organização e das funções do Estado, do direito internacional e das instituições portuguesas.
Poderemos concluir que as obras a que vimos fazendo referência são um indicador do ambiente cultural em que foram produzidas – evidenciam os valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade e também as concepções político-liberais dos seus autores. É essencialmente uma literatura que tem como objectivos implícitos uma expansão e mobilização do público (se bem que esse público seja um universo limitado devido à elevada taxa de analfabetismo do país). É também uma literatura que está em conexão com os debates políticos da época pretendendo contribuir para a consciencialização e interiorização dos ideais e valores inerentes à construção de um Estado liberal.
Notas
1 Na Grécia Antiga, o conceito de cidadania repousava sobre a antítese entre cidadão e súbdito o que pressupunha uma relação de desigualdade entre os gregos. Só os que possuíam o estatuto de cidadania (do qual eram excluídos os escravos e os estrangeiros) podiam participar na vida da polis e só os cidadãos podiam ser eleitos para cargos públicos. Carlos Alberto Torres refere a este propósito: “Na Grécia antiga, o título de cidadão estava intimamente relacionado com a classe patrícia. Efectivamente a cidadania servia para diferenciar os indivíduos que podiam gerir os negócios do Estado (a raison d’état) dos plebeus, isto é, daqueles que não tinham outra escolha senão seguir os ditames do Estado, e obviamente, para diferenciar os cidadãos dos escravos, que não possuíam direitos civis” (2001, p. 118). Por sua vez, na Roma Antiga, o cidadão romano tinha um sentido de pertença ao Estado e era um sujeito de direitos, gozando de prerrogativas especiais, de privilégios, dos quais eram excluídos os escravos e os dominados.
2 Rousseau, como sabemos, previa a democracia directa e Locke falava de uma representação parlamentar, como base válida e indispensável do sistema político. Os vintistas portugueses, ao recusarem o sufrágio universal e ao aderirem à soberania nacional, aproximavam-se ideologicamente dos princípios defendidos por Locke: “Os vintistas nunca se referiram explicitamente à soberania popular, mas sim à soberania sólida da Nação que consideram efectivar-se através das eleições” (Proença, 1990, p. 79).
3 Ao reflectir sobre as formas de exclusão – que ainda permanecem na sociedade actual - Boaventura Sousa Santos esclarece-nos: “A predominância dos processos de exclusão apresenta-se sob duas formas, na aparência contraditórias: o pós-contratualismo e o pré-contratualismo. O pós-contratualismo é o processo pelo qual grupos e interesses sociais até
15
agora incluídos no contrato social são dele excluídos sem qualquer perspectiva de regresso. Os direitos de cidadania [no pós-contratualismo], antes considerados inalienáveis, são-lhes confiscados e, sem estes, os excluídos passam da condição de cidadãos à condição de servos. O pré-contratualismo consiste no bloqueamento do acesso à cidadania por parte de grupos sociais que anteriormente se consideravam candidatos à cidadania e tinham a expectativa fundada de a ela aceder” (1998, p. 24).
4 Se bem que a Constituição de 1822 fosse um documento muito progressista para a época, havia ainda uma larga camada da população (as mulheres, os analfabetos, os criados e os frades) a quem era negado o direito de voto.
5 O Cidadão Literato, ano I, nº 2, Fevereiro de 1821, p. 46.
Idem, ano I, nº 1, Janeiro de 1821, p. XVIII. 6
7 Carlos Alberto Torres debruçando-se sobre a contribuição de Marshall para a abordagem da cidadania, estado e democracia, afirma que “a sociedade civil ocidental alcançou os direitos civis no século XVIII, os direitos políticos no século XIX, e os direitos sociais no século XX” (2001, p.122)
8 Bouaret & outros reconfiguram o sentido do direito social: “Le droit social codifie la mise en place d’un mécanisme de réparation des préjudices sociaux comme les accidents du travail, la maladie, la vieillesse, le chômage, mais aussi bien tous les défauts d’instruction ou de soins dont peuvent souffrir les membres de la société. Il substitue une justice de réparation au rêve d’une justice de réorganisation” (1992, p. 106).
9 São diversos os sociólogos que têm vindo a estudar e a teorizar o fenómeno da globalização. Registemos, pela sua abrangência, a seguinte definição deste conceito: “A globalização é percebida como desnacionalização de territórios, definida pelo crescente poder das corporações transnacionais, pelo intervencionismo dos Estados estrangeiros e por uma invasiva cultura transnacional favorecida pelos meios de comunicação, factores que parecem todos eles prevalecer sobre estados-nação periféricos, capital doméstico e culturas locais, regionais ou nacionais” (Torres, 2001, p. 109).
10 Na actual conjuntura estamos bem longe do nacionalismo oitocentista português que, segundo Miriam Halpern Pereira (1987), atravessou o vintismo, o absolutismo reformista de D. João VI, o miguelismo (com o seu revivalismo colonialista) e o cartismo e para o qual confluíram a perda da independência política formal (invasões francesas) e informal (presença inglesa) e a desarticulação do espaço económico.
11 Touraine acrescenta à categoria de democracia a aceitação do multiculturalismo, um conceito recorrente na sociedade actual: “Nas nossas sociedades, já não possível afirmar-se democrata sem aceitar a ideia da sociedade multicultural” (1998, p. 263). O multiculturalismo é igualmente uma realidade na sociedade portuguesa. Ver a este propósito Cristina Milagre e Florbela Trigo (1996).
12 Boaventura Sousa Santos fala da globalização hegemónica “levada a cabo pelos grupos sociais e classes dominantes” e a globalização anti-hegemónica “levada a cabo por grupos sociais e classes de dominados ou subordinados” (2000, p. 19).
13 Ano I, nº 3, Março de 1821, p. 103.
14 Herculano, Opúsculos I (ed. de 1982). Lisboa: Editorial Presença, pp. 295-296 (texto escrito em 1856).
15 O movimento liberal português foi desencadeado após os actos revolucionários ocorridos no Porto, em 24 de Agosto e em Lisboa, a 15 de Setembro de 1820.
16 A estreia desta peça foi no Teatro do Bairro-Alto de Lisboa, em 29 de Novembro de 1821. Segundo Maria de Lurdes Lima dos Santos, “No teatro português de 1801 a 1846 se incendiaram todas as revoluções, se fizeram todas as ovações políticas e ali desabafaram os sentimentos de liberdade colocados por tantos séculos – a plateia estava atenta e, quando surgiam alusões políticas, rompiam em estrondosos aplausos” (1983, p. 56). Nesta farsa
16
contracenam liberais e corcundas. Para a distinção entre liberal e corcunda ver José Carlos Faria (1999).
17 Esta tirada insere-se na cena X em que contracenam o doutor Lapafúncio, Augusto e Eleutério.
18 Isabel Vargues (1997) fala de várias rupturas originadas pelo movimento liberal nomeadamente a oposição do cidadão constitucional ao vassalo e servo do Antigo Regime e a emergência de uma nova cultura política.
19 Outras obras de Garrett como Viagens na minha terra e diversos artigos espalhados pela imprensa vintista patenteiam, no dizer de Ofélia Paiva Monteiro, “o diálogo empenhado e lúcido com um tempo português determinante - o da passagem do regime absoluto ao liberal” (1997, p. 203).
20 Áurea Adão (1982) faz referência à Comissão de Instrução Pública das Cortes - que apresenta, em 28 de Março de 1821, um relatório sobre o estado decadente da instrução no nosso país - e à criação de uma Junta de Providência Literária para se incumbir estritamente da reforma dos estudos.
21 Ver Vargues (2000). Antecedentes do liberalismo em Portugal, História, Lisboa, nº 30, pp. 20-27.
22 O Cidadão Literato é um periódico de política e literatura, coordenado por José Pinto Rebelo (1792-1870), Manuel Ferreira de Seabra (1798-1895) e António Luís de Seabra (1796-1895). Foi publicado em Lisboa de Janeiro a Abril de 1821, tendo sido editados apenas 4 volumes.
23 O Cidadão Literato, ano I, nº 2, Fevereiro de 1821, p. 48.
24 Áurea Adão (1982) refere que Manuel Fernandes Tomás foi um dos autores do Projecto das Bases da Constituição Portuguesa, apresentado às Cortes em 8 de Janeiro de 1821. No dizer de Zília Osório de Castro “Passou à História como um homem da Revolução. E foi-o de facto” (2000, p. 39). Foi também um dos fundadores do Sinédrio e pertencia à Maçonaria – Valério Publícola era o seu nome simbólico. Em 1820 era desembargador da Relação do Porto.
25 Diário das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, sessão nº 14, de 14 de Fevereiro de 1821. Lisboa: Imprensa Nacional, p. 88.
26 Em 1822, é dada à estampa, na Oficina das Filhas de Lino da Silva Godinho, uma outra obra deste autor Reflexões políticas, sobre os deveres do homem na sociedade, seus direitos, e obrigações a que como membro da mesma sociedade está ligado.
27 O Congresso produziu uma quantidade enorme de leis: “Além da elaboração da lei fundamental da nação, os deputados do Soberano Congresso legislaram profusamente. Deram base legal a muitas das decisões tomadas pela Junta Provisional, como a que terminara com a inquisição e a censura. Além da liberdade de imprensa, defenderam, à maneira inglesa, a liberdade económica tentando pôr cobro aos entraves à livre circulação de produtos, encetando uma tímida reforma dos forais” (Mata, 2000, p. 33).
28 “As leis fundamentais são as leis naturais, e primitivas, sem as quais não podem subsistir outras leis, nem numa verdadeira sociedade. Estas leis naturais ou são físicas ou morais; todas, porém, têm por base a ordem natural física. A ordem natural é o curso das cousas regulado pela natureza isto é pela força activa e produtiva, que Deus espalha em todas as partes do Universo para conservação do todo. As leis físicas são resultados constantes e invariáveis da acção contínua desta força produtiva. A lei moral é o conhecimento dos direitos e dos deveres do homem fundado sobre a lei física” (p. 12).
29 Esta obra suscitou diversos opúsculos como Elenco dos erros, paradoxos, e absurdos que contém a obra O cidadão lusitano (1822), do prior-mor da Ordem de Cristo, D. Luís António Carlos Furtado de Mendonça, Absurdos, paradoxos e erros da obra intitulada O cidadão lusitano (1822), do padre José Agostinho de Macedo, Carta de Ambrósio às direitas ao Sr. Abade de Medrões, atribuída a Francisco Xavier Gomes Sepúlveda. O Abade de Medrões
17
responde a esta carta com o opúsculo Resposta do Abade de Medrões à segunda carta de Ambrósio às direitas. Sobre o abade de Medrões ver Stone, M. C. (1999). O Abade de Medrões. Cidadão e cristão. Dissertação de Mestrado. Lisboa: Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
30 Isabel Vargues alude ao uso do púlpito como espaço político: “do debate travado em inúmeros textos e discursos assistimos a uma politização da prática religiosa ao mesmo tempo que há uma clericalização da tribuna política” (1997, p. 257).
31 F.J.B. (1822). O cidadão liberal rindo com a sua sanfona dos corcundas portugueses. Porto: Imprensa do Gandra, pp. 6-42.
32 Melo, A. J. M. (1821). Colecção de sonetos improvisados... em várias ocasiões de júbilo. Porto: Tipografia de viúva Alvarez Ribeiro & Filhos, p. 7.
33 Herculano no artigo Da revolução à usurpação (ed.1873) traça admiravelmente, com matizes metafóricas, a estratégia e a finalidade dos absolutistas: “Logo que o absolutismo achou o fruto maduro, arrancou-o da árvore quase sem um abanão. O exército, que fizera a revolução, desfê-la. Com um pontapé, faz-se rolar a Constituição para o monturo onde jazia a Inquisição. Elas aí ficaram pacificamente ambas, lado a lado, dormindo o sono do justo” (p. 198).
34 Este jornal surgiu a 26 de Julho de 1821. Segundo José Carlos Faria (1999) “A Navalha de Figaró era um pasquim difusor e amplificador de todo o boatório anti-liberal criticando violentamente a Constituição e apelando abertamente à revolta militar” (p. 42).
35 A Navalha de Figaró, nº 2, 1821, pp. 89-90.
36 “Pasquim era normalmente um papel de pequenas dimensões, manuscrito e com erros ortográficos, em que inscreviam frases e expressões críticas, às vezes tentando encontrar uma rima. O objectivo era a crítica pontual às graves questões sociais e políticas” (Vargues, 1997, p. 258).
37 Colecção Jardim de Vilhena, cit. por Vargues (1997), p. 261.
38 Ferreira-Deusdado - no quadro breve que traça das obras educativas do século XIX - não deixa de fazer referência à obra de Midosi: “Esta brochura constitui um excelente vade mecum da nossa organização civil, administrativa e política da época em que foi escrita. Assenta sobre a Carta Constitucional e não sobre a Constituição de 1822, como O cidadão lusitano” (Revista de Educação e Ensino, nºs 8 e 9, ano XV, Agosto - Setembro de 1900, p. 339).
39 “É a moral que ensina os deveres que o homem tem a cumprir, não só em relação a si, mas também em relação à sociedade” (p. 22).
40 “É a que aplicava as regras da moral civil aos preceitos da religião, pois as duas constituem uma só, não havendo virtude de nenhuma espécie que a religião não aprove” (p. 22).
Referências bibliográficas
Adão, A. (1982). A criação e instalação dos primeiros liceus portugueses. Organização administrativa e pedagógica (1836-1860). Oeiras: Instituto Gulbenkian de Ciência.
Adão, A. (2001). As políticas educativas nos debates parlamentares oitocentistas. O caso do ensino secundário liceal. Lisboa - Porto: Assembleia da República - Edições Afrontamento.
Bouaret, M. C., & outros (1992). Éducation civique et philosophie politique. Paris: Armand Colin.
Castro, Z. O. de (2000). Confrontos sob o signo da liberdade. História, Lisboa, n.º 30, pp. 36-45.
Cruz, M. B. da (1998). Democracia e cidadania: o papel dos valores. Educação e Sociedade, Lisboa, nova série, nº3, pp. 37-48.
18 Déloye, Y. (1994). Ecole et citoyenneté. Paris: Presses de la Fondation Nationale des Sciences Politiques.
Fafe, J. F. (1999). Comemoração dos 50 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Inovação, Lisboa, vol. 12, n.º 1, pp. 131-134.
Faria, J. C. (1999). Garrett, o vintismo e o corcunda por amor. Adágio, Évora, n.º 25, pp. 39-43.
Gellner, E. (1993). Nações e nacionalismos. Lisboa: Gradiva.
Jaume, L. (dir.) (1989). Les déclaration des droits de l’ homme, 1789-1946. Paris: Flammarion.
Lisboa, J. L. (1991). Ciência e política. Ler nos finais do Antigo Regime. Lisboa: INIC.
Mata, A. da S. (2000). Do 24 de Agosto à Vilafrancada (1820-1823). História, Lisboa, nº 30, pp. 28 - 35.
Menezes, I. (1995). Educação cívica em Portugal. Lisboa: I.I.E.
Milagre, C., & Trigo, F. (1996). Educação multicultural, formação de professores e práticas pedagógicas. In TEODORO, A., & PÁSCOA, R. (orgs.) Professor/a: uma profissão em mutação? Actas do 1º Congresso do Fórum Educação. Lisboa: Fórum Educação, Sociedade de Estudos e Intervenção Profissional.
Monteiro, O. P. (1997). Almeida Garrett. In BUESCU, H. C. (coord.). Dicionário do Romantismo Literário Português. Lisboa: Editorial Caminho.
Mougniotte, A. (1991). Les débuts de l’ instruction civique en France. Lyon: Presses Universitaires.
Mozzicafreddo, J. (1997). Estado-Providência e cidadania em Portugal. Oeiras: Celta Editores.
Nogueira, C., & Silva, I. (2001). Cidadania. Construção de novas práticas em contexto educativo. Porto: Edições Asa.
Proença, M. C. (1990). A primeira regeneração. O conceito e a experiência nacional (1820-1823). Lisboa: Livros Horizonte.
Santos, B. S. (1998). Reinventar a democracia. Lisboa: Gradiva.
Santos, M. L. L. dos (1983). Para uma sociologia da cultura burguesa em Portugal no séc. XIX. Lisboa: Editorial Presença.
Teodoro, A. (2001). A construção política da educação. Estado, mudança social e políticas educativas no Portugal contemporâneo. Porto: Edições Afrontamento.
Torgal, L. R. (1981). A contra-revolução e a sua imprensa no vintismo. In O Século XIX em Portugal. Colóquio. Lisboa: Editorial Presença.
Torgal, L. R., & Vargues, I. (1984). A revolução de 1820 e a instrução pública. Porto: Paisagem Editora.
Torres, C. A. (2001). Democracia, educação e multiculturalismo. Petrópolis: Editora Vozes.
Touraine, A. (1998). Iguais e diferentes - Poderemos viver juntos? Lisboa: Instituto Piaget.
Vargues, I. (2000). Antecedentes do liberalismo em Portugal. História, Lisboa, n.º 30, pp. 20-27.
Vargues, I. (1997). A aprendizagem da cidadania em Portugal (1820-1823). Coimbra: Livraria Minerva Editora.
Vargues, I. (2002). Constituição de 1822. Um texto de ruptura. História, Lisboa, n.º 43, pp. 24-32.
19